Era uma tela em branco, refletindo tudo o que andava sentindo. Tomou um gole do café, acendeu o cigarro. Era de madrugada, a rua ainda fazia barulho. A cidade nunca dormiu de verdade. Mergulhou o pincel na tinta vermelha e passou pela tela, depois na azul, na preta, na branca. Estava a semanas sem produzir nada, os papéis andavam jogados pelos cantos do apartamento, assim como as telas que se empoeiravam. Nada saía.Nem arranhando pela garganta, muito menos pelas pontas dos dedos das mãos. Era só uma mistura de cores aleatórias, completamente sem sentido, revirando sua cabeça. Encarou o líquido preto no copo e o viu fazer parte do caos naquela tela, escorrendo por entre as cores.Tinha que respirar, tomar um banho, sair de casa, comer alguma coisa, ver gente, sentir o mar. Aquelas coisas que lhe fariam bem. Mas não queria, nem tinha vontade. Se sentia nada, estar ou não estar, não faz diferença, não faz falta, como se nunca tivesse vivido de verdade. Existiu em alguma época e sumiu com o tempo que se foi, mas permaneceu entranhado. Passou a vida tendo suas sensibilidades apunhaladas, família, escola, rodas de amigos, sendo observada. O vazio dos corredores do prédio nessas horas, tirava um peso das suas costas. Não tinha muito com o que se preocupar. Não haviam olhos para lhe ver. Encostou a tela no poste, percebendo pela calçada que molhava a sola dos seus pés descalços, que não havia visto a chuva passar. Olhou para aquela avenida, ouvindo vozes ao longe. Eram risadas. Fazia três dias que não saía de casa, a madrugada andava tirando seu sono, mas lhe dava outro mundo para observar, melhor do que aquele que a levava a se esconder. Era reconfortante. Continuar lendo “Tela em branco”
Curtir isso:
Curtir Carregando...